QUEM É UM SOBREVIVENTE DA SHOÁ?

Determinar um conceito de “sobrevivente da Shoá” nos ajuda não apenas a reverenciá-los, como também a nos compreendermos como parte da construção desta memória.

 

Por Carlos Reiss

 A pergunta do título não é retórica. Apesar de querer estimular uma reflexão, buscamos sim uma resposta – até porque ela não é consensual. Em primeiro lugar, porque nenhuma definição histórica ou conceituação de grupo pode ser completamente satisfatória. Em segundo, assim como toda a historiografia do pós-Holocausto, é importante se ater às razões e ao processo de construção do conceito de “sobrevivente”. Não há, absolutamente, nenhuma consonância mundial sobre o tema.

  Memórias são construídas não somente por uma questão de identidade e como consequência de processos pós-traumáticos. Antes de se tornar universal, partimos de uma perspectiva particular e grupal. Determinar um conceito de “sobrevivente da Shoá” nos ajuda não apenas a reverenciá-los como também a nos compreendermos como parte da construção desta memória.

  Para buscar uma compreensão honesta e abrangente, discorro sobre cinco perguntas. Cada uma demanda um nível de aprofundamento e análise distinto, o que transforma este texto apenas numa ferramenta para introduzir debates e abrir horizontes.

1- Nos primeiros anos do pós-guerra, por que era necessário definir quem era um sobrevivente do Holocausto?

  O principal motivo recai sobre a realidade dos anos 1950, quando os últimos campos de refugiados (DP camps, os campos para pessoas deslocadas) foram fechados e começaram as negociações de reparos e indenizações por parte da Alemanha Ocidental, lideradas pelo chanceler Konrad Adenauer. Em 1951, foi criada a Claims Conference, a Conferência sobre Reivindicações Judaicas de Material Contra a Alemanha, que existe até hoje. No Brasil, seu representante é a Unibes, com sede em São Paulo, que faz um respeitável trabalho de assistência, educação e cultura.

  Era necessário, à época, definir quem receberia essas indenizações e compensações financeiras. Dizer simplesmente “vítima das perseguições nazistas” era um termo muito vago. Foram criados protocolos e fichas de preenchimento com cláusulas, num processo burocrático que envolvia advogados, traduções e processos que se arrastavam por anos. Falamos de centenas de milhões de dólares que seriam (e têm sido) distribuídos, com justiça, às vítimas (os valores atualizados ultrapassam a marca de 70 bilhões de euros).

2- Imediatamente no pós-guerra, quem era considerado um sobrevivente legítimo?

 De forma concisa, o status era restrito às vítimas do regime nazista ou de seus colaboradores que tiveram explicitamente a experiência do confinamento: do gueto e/ou do campo de concentração e extermínio. Isto incluía, mesmo com as enormes complicações e lapsos documentais, aqueles que se esconderam ou perambularam pela Alemanha e pelos territórios anexados pelos nazistas ou administrados por algum governo fantoche e cúmplice do genocídio.

3- Quem ficava de fora dessa lista?

 Apesar da disparidade entre as histórias das vítimas, é possível suscitar a existência de três principais grupos desprezados dos primeiros conceitos.

  O primeiro: judeus e não-judeus perseguidos pelo regime, mas que deixaram a Alemanha entre fevereiro de 1933 e agosto de 1939 – ou seja, antes da eclosão da guerra. Muitos pesquisadores os nomeiam, até hoje, como fugitivos ou refugiados do nazismo (termo este bastante questionável).

  O segundo: judeus e não-judeus que, entre outubro de 1939 e junho de 1941, fugiram ou foram deportados para o leste, principalmente da Polônia em direção a União Soviética – e lá permaneceram, mesmo após o rompimento alemão do pacto de não-agressão Ribbentrop-Molotov.

  Importante destacar que, após a invasão nazista, a União Soviética formou uma aliança política com o governo polonês no exílio. Sob o acordo de Sikorski-Mayski, concordou-se em liberar os cidadãos poloneses em território soviético, incluindo aqueles considerados prisioneiros de guerra. Parte dos judeus poloneses optou por permanecer nos campos de trabalhos anteriores ou próximos a eles, enquanto muitos foram para regiões de clima mais quente, como o Cazaquistão, Uzbequistão e outras repúblicas soviéticas da Ásia Central. Somente em 2012, seis décadas após o governo da Alemanha Ocidental concordar em pagar reparações aos sobreviventes da Shoá, a Alemanha adotou uma estrutura semelhante de indenizações para aqueles que fugiram do exército alemão em avanço e se reinstalaram na União Soviética.

  O terceiro: judeus que, no período do Holocausto, viviam na Síria, Líbano e países do norte da África (excluindo o Egito). Isto porque alguns foram governados, por certo tempo, pela França de Vichy, que colaborou com os nazistas. Recordamos do famoso filme Casablanca (1942), estrelado pela atriz sueca Ingrid Bergman. Já a Líbia foi governada até 1942 pela Itália, o principal aliado europeu da Alemanha nazista.

  Todos esses países aprovaram legislação antissemita; em alguns, judeus foram fisicamente perseguidos. Há pouquíssimo tempo, passaram a ser contemplados pela assistência da Claims Conference. O tema inclui ainda discussões paralelas, como sobre reconhecer ou não como “Justos entre as Nações” as pessoas que ajudaram a salvar judeus nesse contexto, principalmente do norte da África. É o que destaca o antropólogo Aomar Boum, coeditor do livro “The Holocaust and North Africa”.

4- Por que a definição era restrita e muitos foram excluídos do conceito de “sobrevivente do Holocausto”?

 Por duas razões, basicamente. A primeira de ordem prática: as lideranças dos DP camps consistiam, primordialmente, daqueles que sobreviveram aos campos e guetos. Foram eles que chegaram primeiro aos DP camps, constituídos na zona de ocupação aliada, e se tornaram porta-vozes. Dali, se organizou o sistema de apoio oferecido pela Cruz Vermelha Internacional e, mais tarde, tanto pela Organização das Nações Unidas quanto pelas instituições judaicas como a Joint e a própria Agência Judaica.

  A segundo, por uma questão autoidentitária. No caso dos que emigraram da Alemanha antes do início da guerra, ao tomar conhecimento do genocídio, não se sentiam sobreviventes em pé de igualdade àqueles que sofreram a barbárie em suas últimas etapas.

5- Qual o conceito contemporâneo que melhor se adequa à nova perspectiva de “quem é o sobrevivente da Shoá”?

  Filosoficamente, por iniciativa do Yad Vashem, pode-se dizer que todos os judeus, em qualquer parte do mundo, que ainda estavam vivos em meados de 1945 sobreviveram à intenção genocida nazista, que era total e global. É, aliás, o que torna o Holocausto um evento inédito: não a tecnicidade, o modus operandi ou o número de mortos, e sim, a globalidade do genocídio. Esta, porém, é uma definição muito vasta, pois falta a distinção entre aqueles que sofreram diretamente as ações genocidas.

  Em Jerusalém, define-se como sobreviventes da Shoá os judeus que viveram por qualquer período sob domínio nazista, direto ou indireto, e sobreviveram. Isto inclui judeus franceses, búlgaros e romenos que estiveram sob esses regimes e que não foram deportados, assim como judeus que deixaram a Alemanha pós-1933. De uma perspectiva mais ampla, inclui outros refugiados judeus que escaparam de seus países e que fugiram do exército alemão invasor, incluindo aqueles que passaram anos e, em muitos casos, morreram na União Soviética.

  O Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington, tem uma interpretação mais simplista: qualquer pessoa, judia ou não-judia, que foi “deslocada, perseguida ou discriminada devido às políticas raciais, religiosas, étnicas, sociais e políticas dos nazistas e de seus colaboradores entre 1933 e 1945”.

  O viés contemporâneo mais polêmico reside especialmente nos já citados judeus dos países árabes, já que não existe um consenso entre os historiadores. A maioria discorda da inclusão – incluindo a maior referência nos estudos sobre a Shoá, o professor Yehuda Bauer, que escreveu: “não pretendo difamar o tormento de pessoas que sofriam de leis raciais e decretos antissemitas, ou daqueles que fugiam sem nada em sua posse, mas esses não são sobreviventes do Holocausto”. O professor Sergio DellaPergola, da Universidade Hebraica de Jerusalém, é um dos poucos dentro do círculo acadêmico israelense que defende a inclusão formal desse grupo como “sobreviventes da Shoá”.

  O Museu do Holocausto de Curitiba segue a linha da ampliação do conceito. São sobreviventes, portanto, os que, fisicamente, viveram o contexto do processo sistemático de discriminação, perseguição antissemita e tentativa de aniquilamento iniciado na Alemanha em 1933, implementado pelo regime nazista e seus colaboradores no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Neste mesmo contexto, foram também perseguidos e assassinados outros grupos humanos por suas características físicas, ideológicas, políticas religiosas, étnicas e sexuais.

CARLOS REISS

Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.