A SHOÁ E O PARALELO ENTRE DUAS DATAS JUDAICAS

Como podemos relacionar o fatídico dia “9 de Av” com a memória do Holocausto? Como rememorar o genocídio nesse exato dia, se já temos o Yom Hashoá?

Por Carlos Reiss

Grande ação de liquidação do gueto de Varsóvia. Judeus andando pela Rua Prosta até Umschlagplatz. Coleção IPN/JHI.

 

  O dia 9 do mês judaico de Av é um dia de luto, marcado por uma tristeza profunda e um imenso simbolismo religioso. Popularmente conhecida como “a data mais triste do calendário judaico”, é um dia de jejum que começa ao pôr do sol, basicamente com as mesmas restrições do Yom Kipur: beber, comer, banhar-se ou usar sapatos de couro. Na sinagoga, sentados em bancos baixos, um costume associado ao luto pelos mortos, são lidos os livros de Einach (Lamentações) e poemas litúrgicos tristes. O pesar é tão grande que nem mesmo a Torá é ensinada nas sinagogas nesse dia.

  Como podemos relacionar o fatídico dia “9 de Av” (em hebraico, “Tishá beAv”) com a memória do Holocausto? Como traçar um paralelo simbólico entre Tishá beAv e a Shoá? Como rememorar o genocídio nesse exato dia, se já temos o Yom Hashoá (Dia da Lembrança do Holocausto) e outras datas de memória?

  Em Tishá beAv, lembramos tragédias que, em épocas diferentes, aconteceram nesse dia e assolaram o povo judeu. Do episódio bíblico do pecado dos espiões no deserto, em que dez deles caluniaram sobre a Terra de Israel, até a destruição dos dois Templos de Jerusalém, o esmagamento da Revolta de Bar Kokhba nas mãos dos romanos e as expulsões dos judeus da Inglaterra, França e Espanha, séculos depois. Eventos globais no Tishá BeAv, como a eclosão da Primeira Guerra Mundial, também são incorporados pela perspectiva judaica de que a História não acontece por acaso; todos os acontecimentos são parte de um plano divino com um significado espiritual, mesmo com um propósito que não possamos entender.

  Durante a Shoá, houve também episódios significativos e nefastos em dias 9 do mês de Av. Em 2 de agosto de 1941, o líder nazista Heinrich Himmler formalmente recebeu a aprovação e deu seguimento à “Solução Final”, o plano de aniquilação total do povo judeu por parte da Alemanha e de seus colaboradores. No ano seguinte, em 23 de julho de 1942, foi iniciada a deportação em massa de judeus do gueto de Varsóvia para o campo de extermínio nazista de Treblinka, na Polônia ocupada.

9 de Av e o Yom Hashoá

  Voltemos à pergunta: como lidar com o fardo do Tishá BeAv e de suas lembranças melancólicas tendo, ao mesmo tempo, datas de memória como o Yom Hashoá?

  Numa perspectiva contemporânea, a conhecida data judaica do Yom Hashoá precisa ser, em consonância ao marco de construção da memória desse genocídio, uma oportunidade de universalizar a tragédia: trazê-la para os dias de hoje e difundir suas lições e legados, todos eles construídos por reflexões posteriores.

  No Yom Hashoá (e em todos os dias do ano), falamos sobre a necessidade de nos mantermos alertas e combativos contra qualquer forma de ódio e de preconceito. Destacamos, por meio do slogan “nunca mais”, a necessidade de conectarmos a experiência judaica da Shoá às mazelas sociais que estão próximas de todos nós. Assim como o “27 de janeiro”, convencionado como Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, o Yom Hashoá também é um dia em que, cerimonialmente, nos lembramos e convocamos a agir. Por meio de nossa consciência coletiva, nos erguemos e prometemos proteger as gerações futuras.

  No verão de 1978, o recém-eleito primeiro-ministro israelense Menachem Begin viajou aos Estados Unidos e visitou o famoso rabino Joseph Soloveitchik. Nessa conversa, o rabino propôs que o Yom Hashoá fosse anulado e incluído na estrutura do Tishá beAv. Mesmo com a simpatia de Begin, a proposta não prosperou em Israel por questões práticas: Tishá beAv costuma cair em período de férias escolares, o que dificultaria as rememorações e o ensino do Holocausto. Caso contrário, seria um desastre para a memória da Shoá.

  Diferentemente do dia 9 de Av, o Yom Hashoá nos deve falar mais sobre presente e futuro do que sobre o passado. É importante que ele reflita as angústias e anseios atuais do povo judeu como parte da sociedade, cada qual em sua geração. É por isso que nosso olhar perante o Yom Hashoá deve ser de constantes mudanças e atualizações, como toda memória deve ser. Assim como a data era rememorada e cerimonializada sob outras perspectivas há 60 anos, certamente será diferente em outros 60.

  Como escreveu o saudoso rabino chassídico israelense Adin Steinsaltz, o Yom Hashoá não é um dia de lágrimas. No entanto, precisamos ao menos de um dia para chorar. E o dia para isso é o Tishá BeAv. Nos outros dias do ano, nós combatemos, educamos e transmitimos. Geramos empatia, desenvolvemos o princípio da alteridade, criamos analogias responsáveis, universalizamos e entendemos a utilidade da memória, difundimos valores democráticos e plurais, combatemos a violência e os discursos de ódio, clamamos pelos direitos humanos. No dia 9 de Av, como hoje, 13 de agosto de 2024, nós choramos.

CARLOS REISS

Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.