O ANTISSEMITISMO COMO ELEMENTO ESTRUTURANTE DA IDENTIDADE JUDAICA

A identidade se forma na experiência. Se não houvesse antissemitismo, existiria outra identidade judaica. A questão é qual o papel que queremos para o ódio dentro dela.

 Por Carlos Reiss

Manifestação contra o antissemitismo. Manchester, Grã-Bretanha, janeiro de 2024. Wikimedia Commons..

 

  O ódio, apesar de todas as suas limitações e de sua violência estrutural, é o mais fácil elemento para unir grupos ecléticos: tanto os odiadores quanto os odiados. O atual pico de antissemitismo, que recentemente trouxe à tona a animosidade enraizada por parte da sociedade em relação a judeus – como indivíduos, coletivo ou instituições – exemplifica essa ideia. A onda de aversão tem proporcionado reações por parte das comunidades judaicas organizadas: por um lado, a união de esforços para que esse ódio seja combatido na esfera pública; por outro, as divisões que já se notavam – não por divergências sobre a urgência do combate ao antissemitismo, mas porque as formas de defini-lo e as estratégias são divergentes.

  Em casos onde a convergência se sobrepõe às divisões (e são muitas, mas não o objeto desse texto), momentos difíceis como o que estamos vivendo fazem com que sejam ultrapassadas barreiras internas de cunho político, ideológico e até religioso em prol de um esforço conjunto. Como expressou o escritor Gabriel Paciornik, “é um processo psicológico de pertencimento e sinalização de virtude e união e, ao mesmo tempo, uma reação de autoafirmação em momentos de aflição”.

  Sabemos que judeus são plurais em suas ideias, visões e ações. O ódio sofrido, no entanto, tem o poder de enfraquecer obstáculos que dividem as minorias odiadas e de se transformar num elemento agregador e convergente. De modo geral, apesar das discordâncias no âmago dessa identidade, temos visto certa afinidade por parte das comunidades judaicas desde os covardes ataques cometidos pelo grupo terrorista Hamas.

  Porém, apesar do caráter significativo do ódio como fator de comunhão em grupos plurais como os judaicos, o objetivo desse texto é discutir sobre as relações entre o antissemitismo e a identidade judaica, refletindo se ele pode ser um elemento estruturante dessa identidade. Em outras palavras, se o ódio sofrido por um grupo poderia ser a razão definidora da construção e do fortalecimento da identidade desse próprio grupo. Explico.

 

O que alimenta nossas identidades?

  Uma das reflexões dentro e fora de círculos judaicos é a de como um povo milenar, ao contrário de outros agrupamentos humanos, conseguiu sobreviver por tantas gerações. Citamos dezenas de povos antigos que não mais existem, aniquilados fisicamente ou sufocados culturalmente. Civilizações que desapareceram por fatores externos ou internos e que hoje são resgatadas como ancestrais de outros grupos ou identidades nacionais. Não é esse o caso do povo judeu. Não se vê, literalmente, sumérios, hititas, fenícios ou filisteus caminhando pelas ruas. Mas se vê judeus.

  Qual seria a resposta para essa sobrevivência? Um argumento consolidado seria a interferência divina – que não pode ser descartada, mas não é o fundamento desse texto, que não discute fé ou doutrinas religiosas. Outra explicação seria justamente a união que o antissemitismo desencadeia nos judeus, mesmo essencialmente diferentes entre si.

  O pesquisador norte-americano David Meyers, num artigo de 2017, questionou se o antissemitismo funcionaria como uma força paradoxal de preservação do povo judeu. “Poderá uma relativa ausência de antissemitismo perturbar a dinâmica que assegurou a notável e longa jornada histórica dos judeus?” Ele trabalha com uma delicada balança que determina o contrapeso entre antissemitismo e o que chama de assimilação – conceito discutível e que também não é o foco desse texto. Mesmo assim, ao contrário do que possa parecer, essa suposta lógica é bastante controversa.

  Desde criança, ouço que é o antissemitismo que alimenta nossa identidade judaica (e, por vezes, nossa judeidade). O argumento gira em torno da ideia de que a resistência e a resiliência perante os antissemitas é o que garante a sobrevivência como povo e até como nação. Essa ideia romântica e inocente (que não funcionou para povos dizimados na Antiguidade) tem sido reproduzida à exaustão, principalmente após o Holocausto. O discurso soa cativante, capaz de mobilizar instantaneamente. No entanto, é problemática a concepção de que estamos hoje vivos por causa do antissemitismo, e não apesar dele.

  Em termos abstratos, é questionável a ideia do antissemitismo determinando a essência das identidades judaicas. Em suas “Reflexões sobre o Racismo”, Sartre aponta que o antissemitismo é derivado de uma concepção de mundo por parte do antissemita, e não do judeu. Por isso, não é o antissemita que me define a partir do ódio dele – inclusive esta foi a tentativa nazista. Como destacou Lacan, todo ataque a um terceiro fala mais sobre o autor do ataque do que sobre a pessoa. O ódio que sentem por mim (e, consequentemente, as violências que sofremos) não podem ser mais importantes para me definir como judeu do que aspectos culturais, religiosos, históricos, educacionais, afetivos e sociocomunitários. Afinal, como sintetizaram os historiadores Dana Levitt e Richard Balkin, “a combinação de religião e aspectos culturais do Judaísmo, juntamente com a história e os rituais, é o que cria a identidade de um judeu”.

  Tal ponto de vista sobre o antissemitismo gera uma percepção paradoxal em relação ao ódio: se ele seria o fator determinante para ser quem sou, o que seria de mim se porventura eu não fosse mais odiado? Por que, enfim, combatemos o ódio se seria ele a razão da minha existência? Óbvio que essas são perguntas retóricas e que o ódio apenas destrói, ele não constrói nada.

  É impensável a ideia de que, sem o preconceito e as perseguições, vou me desintegrar e desaparecer como indivíduo, mesmo alimentando essa identidade. A questão não é se a identidade judaica pode existir com ou sem antissemitismo, mas se a identidade judaica é relevante para eu me situar no mundo.

 

É legítimo?

  O antissemitismo não conforma a identidade judaica. No entanto, não seria legítimo que um judeu adote a história de antissemitismo que seus antepassados (e possivelmente ele próprio) sofreram como elemento central de sua identidade? Uma vez que o antissemitismo ocorreu, é válido que o incorpore como um elemento identitário?

  Talvez seja impossível o antissemitismo não ser parte da identidade judaica. A identidade se forma na experiência. Se não houvesse antissemitismo, existiria outra identidade judaica. A questão é qual o papel que queremos para o ódio dentro dela. Quando o antissemitismo se torna o único elemento, passa a ser uma identidade definida exteriormente. Não existe qualquer risco de desparecermos caso o antissemitismo seja derrotado, já que não é ele o responsável pela minha existência como judeu. Existo, afinal, apesar dele.

CARLOS REISS

Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.