ANO NOVO, SALA NOVA: AS TRANSFORMAÇÕES DO ESPAÇO MUSEOLÓGICO
Falar sobre o “antes” da tragédia é uma estratégia fundamental para a construção da memória do Holocausto e para cumprir o imperativo do “Nunca Mais”.
Por Carlos Reiss
Adaptações táteis de obras bidimensionais fazem parte da nova antessala do Museu do Holocausto de Curitiba. Créditos: Maringas MacielMuseus estão (ou deveriam estar) em constante transformação. Eles são reflexos dos anseios e das metamorfoses causadas pelas próprias sociedades, das gerações que vão surgindo e ressignificando, no caso, as formas de lidar com eventos históricos. Museu são, em suma, frutos de seu tempo, numa corrida contínua e incessante em busca do retrato ideal da nossa própria era. Novos projetos, parcerias, exposições e até seu próprio espaço permanente experimenta ajustes frequentes e, em algumas ocasiões, grandes renovações.
É o caso do Museu do Holocausto de Curitiba, que busca adequar sua exposição de longa duração às mudanças e transformações da memória desse genocídio ocorridas na última década. Em outras palavras, materializar no espaço físico as orientações, missões e perspectivas que o Museu já utiliza em suas iniciativas e mediações educativas. Treze anos após a inauguração, presenciamos a primeira grande reforma no espaço interno: a primeira sala da mostra, a chamada “antessala”, inaugurada em de janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Ela fala justamente sobre a vida anterior à ascensão do nazismo e à perseguição aos judeus a outras minorias.
Falar sobre o “antes” da tragédia é uma estratégia fundamental para a construção da memória do Holocausto e para cumprir o imperativo do “Nunca Mais”. Nessa nova sala, apresentamos o período anterior à Shoá por meio de histórias pessoais, utilizando depoimentos, fotos, canções e objetos. Assim, personificamos as experiências e geramos uma empatia mais rápida e forte no visitante. Isso inclui contar histórias de outras vítimas do nazismo, incluindo pessoas LGBTQIAPN+, afro-alemães, pessoas com deficiência e romas e sintis.
Por último, reflete a necessidade do trabalho constante em proporcionar um espaço cada vez mais inclusivo, com ferramentas e metodologias que garantam a acessibilidade do público que nos visita. Para isso, além das Libras, dos recursos de tecnologia/audiovisual e do zelo pela arquitetura em si, o Museu conta com duas parcerias que geraram obras inclusivas.
A primeira delas com a Inclua-me, que desenvolve projetos de acessibilidade com adaptações táteis de obras bidimensionais. A equipe coordenada pela artista plástica, pedagoga e arte-educadora Marina Baffini de Castro produziu duas obras táteis a partir de fotografias da vida anterior ao Holocausto. A segunda, com o Projeto de extensão DeErgo, ligado ao Departamento Acadêmico de Design Industrial (DADIN) da Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR). Coordenado pela professora Cindy Renate Piassetta Xavier, foram criadas réplicas táteis de objetos que se encontravam em nossa reserva técnica e que agora são exibidos em vitrines dessa nova sala.
A vida anterior ao Holocausto
Contar histórias das vítimas remete a um período anterior ao Holocausto. Respeitar a integralidade de cada trajetória implica em perceber como ela constituiu a si mesma e não apenas o que fizeram a ela.
Esse período não deve ser idealizado; muitas das contradições que possibilitaram o Holocausto já estavam lá. Em vários países da Europa, os 15 anos que separam a Primeira Guerra Mundial da ascensão do nazismo foram marcados por tensões não resolvidas e instabilidade – aprofundada pela Crise de 1929. Ideias ultranacionalistas se popularizavam, aliadas a teorias pseudocientíficas surgidas no contexto do Imperialismo europeu, como o racismo científico e a eugenia.
Mas também era possível observar os progressos técnicos, sociais e políticos dessa época. O processo de Emancipação dos judeus, ou seja, seu reconhecimento como cidadãos com direitos iguais aos demais – iniciado no século XIX – parecia uma conquista consolidada. Outro exemplo é a abertura a discussões sobre gênero e sexualidade na Alemanha.
Dez milhões de judeus, mais de um milhão de roma e sinti, milhares de afro-alemães, pessoas com deficiências e tantas outras que viriam a ser perseguidas pelo nazismo tinham olhares diversos sobre o tempo em que viviam. Os vestígios do passado nos revelam que elas não podem ser resumidas a essas categorias. Ricos ou pobres, de esquerda ou de direita, religiosos ou não, urbanos ou rurais. A pluralidade de modos de existir, que tanto incomodava os nazistas, devolve aos próprios sujeitos o protagonismo de suas histórias.
Cada depoimento, objeto, música e fotografia abre uma fresta para um mundo que, em grande medida, se perdeu. Porém, eles não são capazes de contar toda a história, já que tantos não sobreviveram para narrá-la. Por isso, parte das gavetas não se abrem, pois o passado dentro delas já não é mais acessível.
Apesar disso, é preciso revelar os projetos, sonhos e tradições interrompidos. Esses fragmentos do passado nos permitem perceber que havia outras possibilidades. O genocídio que ocorreu não estava pré-determinado. Ao pluralizarmos o passado, podemos imaginar futuros em que outras convivências sejam possíveis.
É só o início
A inauguração da nova antessala (e também de uma obra de arte na área externa, em homenagem ao casal de sobreviventes Max e Hinda Epelzwajg Z”L) marca o início de um período de transformações espaciais dentro do Museu. De agora em diante, a cada ano, uma das salas será revisitada e remodelada a partir das necessidades de memória, de perspectiva, de tecnologia e de acessibilidade. Assim como na primeira experiência, serão meses de pesquisa e trabalho conjunto entre os diversos departamentos que se envolvem no projeto: Pedagógico, Inclusão e Acessibilidade, Museologia, História e Comunicação. Dezenas de parceiros, consultores e fornecedores serão novamente convidados a participar dessa grande força-tarefa que envolve entregar, ao nosso público, experiências cada vez mais impactantes e significativas aos dias de hoje.
A próxima sala a ser trabalhada, descartando o fator cronológico e sequencial da própria exposição, será a chamada “sala dos guetos”. Nela, novos recursos e histórias serão produzidos, implementados e, assim seja, inaugurados no início de 2026. Afinal, museus são sinônimos de novidades e de constante transformação. Por isso, o cuidado com a museografia é fundamental. Compreendemos nosso papel e nossa responsabilidade na construção da memória do Holocausto. Somos uma constante onda de ressonância. Um chamado contra o ódio e a intolerância.
CARLOS REISS
Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.
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