9 DE NOVEMBRO DE 1938: COMO NOMEAR ESSE EVENTO HISTÓRICO?

O termo Kristallnacht não enfatiza o marco que deve ser considerado: o primeiro momento em que judeus foram presos em massa e enviados a campos de concentração apenas por serem judeus.

 

Por Carlos Reiss

Homens judeus aprisionados marcham em Berlim na manhã de 10 de novembro de 1938, antes de serem deportados. Crédito: US Holocaust Memorial Museum.
 

  Os últimos anos testemunharam um intenso debate acerca da terminologia referente aos eventos de 9 e 10 de novembro de 1938 na Alemanha nazista e na Áustria. Do uso recorrente e instintivo do termo Kristallnacht, alcançamos um estágio em que as discussões sobre a nomenclatura ultrapassaram o consenso da “Noite dos Cristais” (ou “Noite dos Vidros Quebrados”) e atingiram outros conceitos. O mais comum, o “Pogrom de novembro”. 

   Os objetivos desse texto envolvem resgatar o contexto dos primórdios do uso da expressão Kristallnacht, bem como a tentativa de burlar a opinião pública sobre o que de fato havia ocorrido no Reich. Também pretende-se apontar problemas conceituais tanto para o uso de “Noite dos Cristais” quanto de “Pogrom de novembro”, destacando o processo para a escolha de termos ligados a eventos históricos.  

Origem e imaginário do termo Kristallnacht

  No contexto imediato aos eventos de novembro de 1938, uma variedade de termos foi utilizada na imprensa e no meio popular. Agências do regime nazista chamaram o ataque às comunidades judaicas alemã e austríaca de Aktion, Judenaktion, Vergeltungsaktion (“ação de vingança”) e até Rath-Aktion, em homenagem a Ernst vom Rath, o diplomata alemão assassinado em Paris. Naquela época, surgiu o termo que, segundo os historiadores Ulrich Baumann e François Guesnet, soava estranhamente sarcástico e inadequado: Reichskristallnacht. 

  O uso da expressão foi registrado pela primeira vez em junho de 1939, em um discurso do orador do partido nazista Wilhelm Börger, em uma convenção em Lüneburg sobre as políticas do regime em relação aos judeus. Fato é que a Kristallnacht pode ser considerada uma fonte do grande balão de ensaio do que viria a ser a autonegação nazista do que exatamente aconteceu nesse episódio. Explico. 

  A noção de “Noite dos Cristais” nos remete às lojas com vidraças quebradas pelo chão e às sinagogas em chamas. Isso teria desviado o foco principal e diminui a importância histórica desse evento. Numa perspectiva mais contemporânea, a proposta seria substituir o imaginário das sinagogas queimadas e dos vidros estilhaçados (ou seja, as fotografias em que as pessoas são ausentes) pela multidão de alemães assistindo filas de judeus presos caminhando pela rua principal e sendo mandados a campos de concentração como Dachau, Sachsenhausen e Buchenwald. Nesses dias, aconteceu algo que ainda não havia ocorrido: um plano de prisões em massa de cerca de 30 mil homens judeus.

Problemáticas sobre o uso do termo Kristallnacht

 A popularização do termo Kristallnacht, portanto, alterou o foco do que realmente acontecia. E qual teria sido o objetivo dessa negação? Dentro da noção de revisão historiográfica séria, da descoberta, discussão e interpretação de novas fontes, teria sido desviar o foco do encarceramento em massa de judeus, que não havia ocorrido desde a criação dos primeiros campos de concentração, ainda em 1933.   

    A tentativa de enganar a opinião pública (tanto externa quanto interna) sobre o que de fato acontecia, incluindo a popularização do termo Kristallnacht, que servia a esses interesses, teria sido um teste de negação. No fim das contas, teria o objetivo de verificar a adesão ou a cumplicidade por parte da população em relação a políticas mais agressivas em relação aos judeus – naquele ponto, ainda distantes do extermínio em massa.

    A problemática do uso do termo não apenas na “origem nazista”, mas no que as pessoas associam e no que ele remete: uma violência patrimonial; vidros quebrados e sinagogas incendiadas. O termo faz com que esse evento seja associado exclusivamente aos prédios cujas vidraças foram destruídas – o que era real e terrível. A questão, no entanto, está em onde dar o foco. O termo Kristallnacht não enfatiza o marco que deve ser considerado: o primeiro momento em que judeus foram presos em massa e enviados a campos apenas por serem judeus.

O “Pogrom de novembro”

Ao longo da última geração, historiadores ampliaram a compreensão da violência antijudaica na Europa Oriental e da história da palavra “pogrom”. O termo russo originalmente se referia a devastação generalizada e a série de pilhagens, agressões e assassinatos cometidos no contexto da Rússia czarista contra populações minoritárias – principalmente judaica, em seus pobres vilarejos. 

    Grosso modo, o uso da palavra “pogrom” parece refletir uma urgência por uma expressão condizente com o horror e a violência organizada contra uma minoria indefesa (e integrada) na Alemanha e na Áustria. No entanto, aqui também existem problemas. O primeiro é a tentativa de estabelecer uma continuidade direta entre os pogroms da Rússia czarista e o nazista. Ao enfatizá-lo como um “pogrom”, apaga-se a especificidade dos atos cometidos pelos nazistas. Afinal, não foi um “simples” pogrom. Foi um divisor de águas.

    O segundo problema é, sobretudo, porque os pogroms na Rússia czarista eram executados pela população comum. Não havia uma articulação organizada por parte do Estado, que tinha um papel de conivência – ele fazia pouco ou nada para coibir. Ao contrário da Kristallnacht, quando houve participação direta do Estado. Em outras palavras, usar o termo “pogrom” reforça a narrativa da propaganda de Goebbels, de que que foi algo espontâneo, uma ira popular, e retira a participação e a responsabilidade do Estado.

Qual termo deveríamos optar?

A escolha de determinado termo para denominar um evento histórico vai muito além de um debate sobre classificação ou nomeação. Não se trata de uma discussão sobre a origem etimológica das palavras, já que a língua é dinâmica e o significado não está no significante. E muito menos sobre factualidade histórica, sobre um termo ser mais exato ou preciso do que outro. Tudo tem a ver com o que nós queremos dizer, o significado que aquilo nos remete.

    Parece um detalhe mínimo chamar um evento histórico de um jeito ou de outro. Porém, o evento só se torna evento quando contamos sua história – depende, portanto, da narrativa. A história é narrativa porque não existe possibilidade de acessar os fatos sem escolher palavras para descrevê-los. E a cada palavra, nosso imaginário remete a coisas diferentes.

    A Kristallnacht foi um ataque ao patrimônio que resultou em prisões ou a continuidade de movimentos de ira espontânea popular? Ou é outra coisa? Por que precisamos de outro termo? Discussões paralelas podem ser estabelecidas em relação a outros eventos históricos, como a ideia de um “descobrimento do Brasil”. O próprio genocídio cometido contra o povo judeu: Shoá; Holocausto; Churban…

    Nenhum termo será capaz de dar conta, de classificar, adjetivar ou representar o terror. A linguagem tem sempre seu limite. A proposta aqui seria assumir a incompletude das palavras e optar por um termo disparador, e não indicar o fim da discussão. Para isso, vale a aproximação com os debates e estudos antirracistas, que privilegiam as perspectivas das vítimas. Não se trata de um politicamente correto que esvazia os debates e nem mesmo censurar quem usa determinado termo, e sim aprender a usá-los e entender a que eles remetem.

CARLOS REISS

Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.