AS FOTOGRAFIAS E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO

Fotografias começaram a ir além de servirem de evidência da ocorrência deste evento trágico para passarem a transmitir sensações. Algumas se tornaram parte de um cânone compartilhado, uma forma de lembrar coletivamente.

 

Por Michel Ehrlich

Höcker Album. Solahütte, Polônia ocupada, julho de 1944. US Holocaust Memorial Museum #34585A. Domínio Público.

 A fotografia foi parte da constituição da memória e das disputas de como lembrar o Holocausto desde quando os próprios eventos se desenrolavam. 

 O período do regime nazista, do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial foi uma época de muitos avanços técnicos e tecnológicos em torno da fotografia e de consolidação do fotojornalismo como área de atuação. Ainda durante o conflito, Eixo e Aliados usaram extensamente a fotografia. Em alguns casos, foram registros pessoais (como as do álbum Hoecker, presente no material educativo “Cliques e memórias: 20 fotos icônicas”) ou parte de relatórios burocráticos, caso das imagens envolvendo a liquidação do gueto de Varsóvia). Entretanto, principalmente, eram produzidas imagens que já em sua concepção eram pensadas como produtoras de imaginários – por exemplo, a de Adolf Hitler em frente a Torre Eiffel, em Paris, ou da bandeira soviética tremulando em Berlim.

 A relação próxima entre memória do Holocausto e fotografia também fez parte da tomada de consciência do público geral em relação à dimensão do genocídio. Em 12 de abril de 1945, ao liberar o campo de concentração nazista de Ohrdruf, na Alemanha, o general do exército dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, teria dito “que o mundo veja” [“let the world see”], permitindo (e praticamente ordenando) que a imprensa registrasse, de todas as formas possíveis, mas especialmente com imagens, os horrores que vinham à tona.  

 

Evidências e sensações

  Nos meses finais da Segunda Guerra Mundial, à medida que os Aliados liberavam campos de concentração e extermínio, muitas fotografias eram tiradas – em um primeiro momento, pelos fotógrafos das próprias forças armadas e depois pelos da imprensa em geral. Havia, no entanto, dúvidas e receio sobre o que fazer com essas fotos e qual seria seu impacto emocional. Seu primeiro uso foi como prova. Fotografias, tanto as tiradas pelos Aliados como aquelas produzidas pelos próprios nazistas e encontradas, foram usadas nos julgamentos de criminosos nazistas. Na imprensa, as fotos também tinham esse caráter de prova. Imagens seriam evidências mais convincentes da verdade e difíceis de negar. 

  Aos poucos, contudo, as fotografias sobre o regime nazista, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto começaram a ganhar outras funções. Seu uso nas reportagens sobre as atrocidades nazistas se alastrou pela capacidade de dizer o que os jornalistas não conseguiam exprimir em palavras. Elas não serviam apenas para atestar uma verdade, mas para contar uma história. Fotos também foram empregadas nos programas de reeducação, parte da desnazificação implementada pelos Aliados na Alemanha logo após o fim da Guerra.

  Assim, fotografias relacionadas ao Holocausto começaram a ir além de servirem de evidência da ocorrência deste evento trágico para passarem a transmitir sensações: horror, culpa, responsabilidade etc. Algumas fotografias se tornaram, dessa forma, parte de um cânone compartilhado, uma forma de lembrar coletivamente. Reproduzidas em jornais, revistas, livros didáticos e, mais recentemente, páginas na internet, pessoas diferentes passam a remeter às mesmas imagens ao Holocausto.  Em alguns casos, esse trabalho de memória inclusive ressignifica imagens que originalmente serviam aos nazistas, como atesta o caso daquelas tiradas dentro do gueto de Varsóvia.

  Do enorme reservatório de fotografias do período, algumas se tornam tão conhecidas que, icônicas, já se referem menos aos eventos e personagens que especificamente retratam e mais ao Holocausto como um todo. A foto dos prisioneiros recém-liberados em Buchenwald, por exemplo, se tornou um símbolo geral do universo concentracionário nazista. Não raro, pessoas acreditam que a foto foi tirada em Auschwitz, o maior e mais mortal dos complexos de extermínio.

  Essa memória coletiva visual e de construção do imaginário corre o risco, entretanto, de cair na ilusão de que reconhecer a imagem por já tê-la visto antes implica em compreender o que elas representam. É para evitar essa armadilha que, nesse material educativo, damos um passo atrás e procuramos refletir sobre essas imagens como fotografias. Afinal, para ir além da prova e do horror, uma verdadeira compreensão do Holocausto, ainda que parcial e incompleta, requer que saibamos também as histórias dos rostos por trás dos cliques (e das câmaras). 

  Dessa forma, é possível ir além do significado canônico, abrir as possibilidades interpretativas e deixar aflorar outras memórias. Enquadrada em um significado pré-definido, a memória fica fossilizada, sem diálogo com os dilemas do presente. Assim, explorar as imagens como fotografias além do ícone permite reinscrevê-las na dinâmica da memória em constante transformação. 

Esse artigo faz parte do material educativo “Cliques e memórias: 20 fotos icônicas”, lançado em agosto de 2024. Para acessá-lo na íntegra, clique aqui.

MICHEL EHRLICH

Michel Ehrlich é mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba.