O CARÁTER JUDAICO DA MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO

A essência da judeidade é rejeitar que pode haver uma essência, é sempre reinventar a si na experiência da alteridade.  

Por Michel Ehrlich

Memorial aos partisans e soldados judeus que lutaram na Segunda Guerra Mundial, no Museu Yad Vashem, em Jerusalém. Wikimedia Commons.

  O que há de singularmente judaico e o que é universal no Holocausto? As respostas podem ter várias camadas.  

  A primeira é factual. Judeus foram, em termos proporcionais, a população mais vitimada pelo regime nazista. Além do genocídio físico, um universo cultural foi praticamente exterminado – por exemplo, a cultura iídiche do Leste Europeu e a intelectualidade judaica de língua alemã da Europa Central. Mesmo os sobreviventes reconstruíram suas vidas em outro contexto aqueles mundos praticamente deixaram de existir. Assim, nada mais justo que judeus possam ter um luto e uma memória especificamente sua, que dê conta de elaborar significados para a perda. 

  Ao mesmo tempo, sabemos que a Segunda Guerra Mundial, aliando ideologias destrutivas ao aparato tecnológico, causou uma destruição sem precedentes. Judeus não foram o único grupo populacional perseguido e muito menos o único impactado. A lembrança não pode ser somente judaica. Outros não apenas têm o direito a essa memória, como devem lembrá-la, pois diz respeito a eles.  

  A segunda camada tem a ver com o impacto do nazismo. Judeus não foram somente as principais vítimas em termos estatísticos. Sua figura representava, para os nazistas, o seu antagonista máximo. Não é possível compreender esse passado sem abordar o antissemitismo.

  No entanto, o nazismo vai muito além da exacerbação do antissemitismo histórico. Ele se ancora sobre outras contradições e desafios. Os estudos mais recentes sobre nazismo e Holocausto apontam para suas relações com diversas temáticas: colonialismo, teorias raciais, nacionalismos, opressões de gênero e autocracia, além de servirem de disparador para discussões sobre direitos humanos e genocídios. O nazismo e o Holocausto reconfiguraram a autoimagem do Ocidente e apontam para o dever, ainda inconcluso, de rever pressupostos estruturantes da sociedade. 

  Nas primeiras décadas após o Holocausto, essas dimensões judaica e universal constituíam memórias separadas. Com o passar do tempo, percebeu-se sua indissociabilidade. É impossível analisar o nazismo e seus crimes sem considerar a especificidade do antissemitismo nazista ou compreender profundamente o Holocausto sem entender o processo político, as construções ideológicas e antecedentes históricos. 

 

O que define um evento histórico como judaico? 

  Mas há uma terceira camada, mais complexa e subjetiva. Afinal, o que define um evento histórico como judaico?  

  Durante a maior parte de sua história, grande parcela do povo judeu viveu como minoria espalhada em meio a outras culturas. E a identidade judaica permaneceu existindo. Uma explicação possível é que a marginalização (provocada ou autoimposta) fez com que a sociabilidade judaica permanecesse endógena. Essa explicação – mais factualmente correta para alguns contextos do que para outros – aponta para “como” a identidade judaica continuou existindo. Mas não o porquê. A resposta, paradoxalmente, reside não na reclusão, mas na abertura às trocas culturais.  

  Como aponta o sociólogo Bernardo Sorj, a sobrevivência do judaísmo dependeu de um “nomadismo metafórico” que o faz capaz de “viajar” entre culturas, absorvendo algo de todas sem deixar de ser o que é. Essa capacidade de constantemente se atualizar e incorporar novos elementos é o que fez com que não somente os judeus seguissem existindo, mas a judeidade seguisse relevante para os judeus a cada novo contexto, fornecendo uma base para responder e agir perante novos desafios.

 

A essência da judeidade

  Seria possível haver algo, então, puramente judaico? A essência da judeidade é rejeitar que pode haver uma essência, é sempre reinventar a si na experiência da alteridade. De fato, nenhuma cultura é pura. Mas o caso judaico deixa isso escancarado e aponta que identidades imutáveis são, não só no caso dos judeus, sempre uma ficção.   

  Na era dos nacionalismos, isso era intolerável. Se o esperado é a lealdade a uma só identidade, o judeu cosmopolita e desenraizado, como diria Michael Löwy, era associado a uma ameaça estrangeira, um parasita traidor que corrompe a nação e a raça, e trama contra a ordem. Essa acusação foi um elemento importante do caso Dreyfus e mesmo do Holocausto. Na contemporaneidade, ainda há antissemitas que veem no judeu (um singular que representaria todos) uma única coisa. E, como resposta, também judeus que tentam abraçar integralmente uma identidade fixa. 

  Mas o que pode ser fonte de tensão e perseguição também pode e deve ser abraçado como uma virtude e inspiração para o habitar no mundo. Precisamente por ser sempre mais de uma coisa, por pertencer a muitos grupos e nunca exclusivamente a um, o melhor da tradição judaica tem o potencial de subverter identidades homegeneizantes, desintegrar ilusões de pureza e gerar laços de solidariedade com o Outro. Precisamente porque o Eu judeu é também um Outro não-judeu. E essa é uma via de mão-dupla. Se o judeu é sempre algo mais, há algo de judeu também nesse Outro não-judeu.  

  Os judeus vítimas do Holocausto foram perseguidos por serem judeus, e nada mais. Então essa memória é certamente judaica. Mas o judaico não é apenas judaico. Há algo judaico e universal na memória do Holocausto, mas tentar estabelecer fronteiras entre eles não só é impossível como ignora talvez sua principal lição: que a pluralidade de uma sociedade é algo que a enriquece e que estamos todos entrelaçados uns aos outros pelo caráter híbrido de nossas identidades. 

Esse artigo faz parte do material educativo “Interfaces Judaicas do Museu do Holocausto”, lançado em maio de 2024. Para acessá-lo na íntegra, clique aqui.

MICHEL EHRLICH

Michel Ehrlich é mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba.