A RESPONSABILIDADE AO INDICAR FILMES SOBRE O HOLOCAUSTO

Há dificuldades e responsabilidades ao criar uma lista aberta de melhores filmes que envolvem não apenas a qualidade da obra (e o gosto de quem indica), mas suas implicações para públicos distintos, principalmente os jovens.

Por Carlos Reiss

Zona de interesse, Oscar de Melhor Filme Internacional 2024. Divulgação/A24

  Longe das discussões sobre a indústria cultural e a contribuição da linguagem cinematográfica na construção da memória, as produções sobre o nazismo e o Holocausto transformaram-se praticamente num gênero – que, como tal, possui suas próprias convenções e limitações. O cinema ficcional que usa como pano de fundo o genocídio cometido pelos nazistas e seus colaboradores se consolidou não apenas no cenário hollywoodiano, mas tornou-se parte da experiência de diversos países, inclusive do Brasil. Atualmente, basta que um novo filme ganhe as telonas com alguma repercussão para que críticos e especialistas divulguem suas listas de “filmes obrigatórios”. Caso de “Zona de Interesse”, que novamente catapultou essas listagens.

 “Entenda o Holocausto por meio de 10 filmes”, “os cinco melhores filmes sobre campos de concentração” e “oito filmes para refletir sobre o nazismo” são apenas exemplos de chamadas em sites, portais, jornais e até em páginas oficiais de secretarias de educação, como a de São Paulo. A experiência educativa do Museu do Holocausto de Curitiba também lida com pressões e questionamentos do público, muitas vezes seduzido por um fetiche, e principalmente educadores, para indicar e divulgar sua própria lista de “favoritos”.

    A tarefa, no entanto, é mais complexa do que parece. Ela pressupõe reflexões sobre educação, ficção e arte. Há dificuldades e responsabilidades ao criar uma lista aberta de supostos melhores filmes sobre o Holocausto que envolvem não apenas a qualidade da obra (e o gosto de quem indica), mas suas implicações para públicos distintos, principalmente os jovens e estudantes em ambiente escolar.

Questão pedagógica

Qualquer lista de “melhores” ou “imperdíveis” presume que existe um público-alvo, ou seja, um grupo privilegiado que terá acesso às indicações. Quanto mais diverso e heterogêneo é esse público, torna-se obviamente mais difícil recomendar qualquer obra, já que propósitos e bagagens são muito distintos. Listas que consideram um público médio ou genérico costumam ignorar as especificidades (etárias e culturais) e os anseios das pessoas.

   Além disso, nenhum filme consegue cumprir com as intenções e expectativas de todos os seus espectadores – e nem teriam qualquer pretensão a tal. Até porque, ao mesmo tempo em que a arte diz o que outras formas não conseguem dizer, nenhum produto logra alcançar a plenitude do entendimento do que foi qualquer evento histórico, muito menos o Holocausto. São apenas recortes que privilegiam um roteiro escrito e filmado e uma história a ser contada num determinado contexto.

 A questão fica mais delicada quando professores e educadores se alimentam dessas listas genéricas e a utilizam como referência para seus trabalhos pedagógicos. Não porque não possam ser utilizados como instrumento didático, pelo contrário. A discussão e a interpretação de filmes produzidos a partir de uma reconstrução da realidade, como apontam diversos pesquisadores, estimulam o debate, o pensamento crítico e a noção de empatia. A ficção sobre o Holocausto, que não é o oposto da realidade, tem seu grande valor pedagógico. Mais acessíveis e com maior alcance dos que os testemunhos, elas também aproximam emocionalmente os consumidores desse gênero.

 O mais importante a ser destacado é que quaisquer obras indicadas para o público em geral ou para uso em sala de aula possuem naturezas, abordagens e classificações muito distintas entre si. Nem todas são apropriadas a todas as idades ou circunstâncias, dependendo de um olhar profissional do educador para elegê-las ou não. Propostas pedagógicas éticas e responsáveis demandam uma análise cuidadosa desses objetos, que proporcionam ferramentas para trabalhos disparadores, de desenvolvimento ou de conclusão, sejam eles na íntegra ou em fragmentos.

Gosto e qualidade

Ademais da cautela e da competência, as ponderações sobre a qualidade técnica e a influência do gosto também interferem na indicação e seleção de filmes para uso em projetos pedagógicos. Posso gostar técnica e artisticamente de uma determinada obra, mas compreender que sua recomendação dependeria de uma proposta e de um público-alvo condizentes com os limites e as controvérsias desse produto. Casos, por exemplo, de “Bastardos Inglórios” (2009) ou de “Jojo Rabbit” (2019). Mesmo os filmes celebrados e reconhecidos podem ser inapropriados a determinados públicos, e não por razões de classificação indicativa.

 Preferências diversas que envolvem atores e atrizes, diretores, fotografia, trilha sonora e até escolhas de roteiro também interferem na presença ou ausência de um filme numa dessas listas. Principalmente as de especialistas, seja em cinema ou em Holocausto, mais independentes e menos sujeitos à interferência de críticas. Há quem considere “A Lista de Schindler” e “A Vida é Bela”, apenas para citar duas obras premiadas e conhecidas do público, um grande escárnio, por razões diversas.

 Enfim, o que pode ser uma dúvida do leitor que chegou até aqui, faço questão de responder. Sim, tenho minha lista de preferidos. Uma relação de pouco mais de vinte filmes que me influenciaram, me ajudaram a referenciar a representação artística e os benefícios das obras cinematográficas sobre o Holocausto, que vão além do “documento histórico”. Todos esses filmes, no entanto, passíveis de críticas, repletos de clichês do imaginário dominante e impróprios para 100% das situações e contextos. Para cada situação em que sou questionado, elenco alguns deles, até mesmo de fora dessa lista. As consequências de uma escolha ruim podem ser avassaladoras no campo da educação. Por isso, um dos valores incorruptíveis é o da responsabilidade.

CARLOS REISS

Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.